14 de abr. de 2009

As estratégias que preparam o terreno para quem deseja escrever textos mais dinâmicos e inventivos

Fonte: Revista Língua

O jornalista Sérgio Porto (1923-1968), ou Stanislau Ponte Preta, sugeriu certa vez que o colunista social Ibrahim Sued (1924-1995), entre outras qualidades, era ignorante e analfabeto. Raivoso, Ibrahim ameaçou processá-lo, caso não houvesse retratação.

A ameaça não foi ignorada. Mas Sérgio Porto não poderia simplesmente recuar.
Imaginemos que ele estava querendo sair da ameaça de processo sem negar o que disse. As horas passam e ele busca uma solução. Mas, na coluna seguinte, lá estava o trivial texto todo-amores, alegando que tudo não passara de mal-entendido. É então que, muitas linhas de escusas depois, o texto dispara, ali, no finalzinho:

"Em momento algum, Ibrahim, escrevi que você é um analfabeto. Quem leu isso para você, mentiu".
Um leitor distraído poderia deixar passar a sutileza de Sérgio Porto em afirmar negando. Seu raciocínio deu uma virada, similar, embora muito mais elegante, à vivida pelo sujeito que pergunta: "Poderia me dizer as horas?" e recebe em resposta: "Posso, mas não agora".

Mudar o eixo
Ao cunhar a afirmação apoteótica, num texto que seguia outra direção, um de nossos maiores cronistas reproduziu antigo mecanismo de produção criativa de textos, o da procura por um evento precipitador que reconfigura o problema inicial. A frase final de Porto desencadeia um estalo cognitivo que transforma a situação e reorganiza o universo de percepção de quem lê.

Mudar o eixo em que as coisas são apresentadas está no cerne de um texto criativo. O raciocínio comum, sequencial, atua dentro de um quadro de referências aparente e familiar. O inventivo diz algo além do que está na superfície, associa o domínio inicial de um problema a outro quadro de referências.

Não se pode escrever (com qualidade) sem mobilizar mecanismos que estão no terreno da criatividade, a habilidade de criar respostas novas e inusitadas para os problemas de expressão com que estamos envolvidos. É habilidade valorizada em empresas, governos e escolas conscientes de atuarem num cotidiano que passou a exigir mais do que meras soluções esquemáticas para problemas cada vez mais imprevisíveis em realidades que se transformam.

Qualidades
Em geral, criatividade vem da busca de solução quando tropeçamos num grande volume de abordagens possíveis ou soluções parciais que consideramos insatisfatórias.

O brasileiro tem um temperamento, em particular criativo, para agir em condições adversas e improvisar ante o inesperado, mas nem sempre se sente preparado para traduzir essa diversidade por escrito. Por isso, podem ser de ajuda algumas constatações que a literatura, a filosofia e a ciência fizeram recentemente com relação à criatividade.

A primeira e mais significativa delas é que criatividade é artesanato, não um dom. Ninguém nasce criativo, mas é possível exercitar a habilidade, o que não a torna uma qualidade natural em todo mundo.

A segunda é que o estímulo primário para um texto criativo é a capacidade de seu autor se abastecer de informações das mais diversas fontes e dos mais variados tipos, e ter a disciplina de ver sempre que bicho dá o ato de conectá-las. Uma das qualidades criativas de um texto é inserir informação antiga (só obtida pelo hábito de consumir e colecionar informações consistentes) em contexto novo, aplicada a um problema atual.

Textos criativos transpõem de forma inesperada uma qualidade humana a uma outra realidade. Essa tradução, em geral, é feita de duas maneiras:

1) Ao recombinar coisas já existentes em outros contextos, dando-lhes novas finalidades;
2) Ao modificar a relação habitual que há entre duas ou mais coisas ou seres, no momento em que se relacionam.

Essa mecânica da redação criativa não dispensa o exercício da curiosidade e nem a experiência. Mas ele pode ser sistematizado para mostrar suas estratégias e seus padrões elementares. Há estratégias que não são garantia de pensamento criativo, mas estimulam um estilo criativo de escrever, aumentando a possibilidade de conseguir soluções satisfatórias.

Ciência
Com estudos realizados por meio de tomografia funcional de ressonância magnética e eletroencefalografia, pesquisadores de diversos países tentam descobrir em que lugar da mente estala a centelha criativa. Segundo a revista Mente & Cérebro (Duetto Editorial), um estudo com músicos de jazz durante uma improvisação em público, feito por uma equipe da Universidade Johns Hopkins (EUA), encabeçada pelo pesquisador Allen Braun, divulgou ano passado que há um padrão bipolar no cérebro durante o ato de criação. Ao ter uma fagulha criativa, a pessoa manteria algumas re­giões cerebrais em alerta enquanto desconecta outras. O córtex pré-frontal desativa o controle com que tendemos a nos adequar ao meio e o cálculo de comportamento que temos o hábito de fazer.

Visão sequencial
Pesquisas como essa podem até explicar o que caracteriza alguém criativo no ato de criação. Mas não necessariamente a operação de guerra que se passa em quem busca escrever com criatividade. Segundo David Perkins, em A Banheira de Arquimedes (Ediouro, 2001), o processo do pensamento criativo se dá, não raro, num ciclo de cinco etapas, que tende a ter lugar em episódios como o de Sérgio Porto:

- Busca demorada: inovação é fruto de contínuo esforço.
- Pouco progresso aparente: ideias inovadoras surgem depois de muitas tentativas.
- Evento precipitador: circunstâncias externas que dão a deixa ou precipitam um evento mental.
- Estalo cognitivo: pensamento inovador vem de repente, como peça que se encaixa no lugar.
- Transformação: ideia de impacto altera o modo como agimos.

Depois de muitas tentativas, Sérgio Porto criou uma simulação em busca de um estalo cognitivo até que encontrou seu evento precipitador (se alguém lê para Ibrahim, então ele é analfabeto), que acreditava poder transformar o modo como o receptor da mensagem reagiria.

É o tipo de mecanismo de raciocínio que marca grandes gênios da escrita criativa, como Machado de Assis, Conan Doyle, Federico Fellini ou Charles Chaplin, capazes de desenvolver em profusão, a partir de elementos sumários, situações as mais criativas para seus personagens. Alguns deles transformaram criatividade em estilo, sintático e lexical, como Guimarães Rosa. Outros protagonizaram alguns dos mais frutíferos processos de criação narrativa, caso de Chaplin .


Vícios sequenciais
O psicólogo americano Joy Paul Guilford (1897-1987) estabeleceu nos anos 50 uma distinção, hoje clássica, entre pensamento convergente e divergente. O convergente é o que tende a limitar sua procura a uma única possibilidade correta de solução para dado problema. Já o divergente seria o raciocínio criativo.

O raciocínio sequencial, convergente, tende a nos viciar de dois modos ao escrevermos um texto:
1) Se o redator foi muito intimidado no processo escolar, pode tornar-se demasiado crítico consigo mesmo ao escrever. Pode implicar com questões secundárias à produção do texto, parando a todo instante para resolver questões gramaticais, perdendo o fio da meada, o rumo do raciocínio, o que afeta sua fluência e a continuidade da escrita.

2) Falta de familiaridade com outras soluções: tendemos a moldar nosso texto a fórmulas que conhecemos. É um modo de pensar e escrever que funciona dentro de um quadro de referências, familiar. Há quem, por exemplo, tenha dificuldade de apreender o todo pela amostragem de uma única parte. Por isso, quanto menos conhecemos, mais limitado tendemos a escrever.

Problemas
Os problemas que exigem criatividade, diz David Perkins, costumam ter aspectos estruturais que desafiam o raciocínio sequencial:

- Imensidão de possibilidades: inúmeras direções tentadoras, com poucas soluções realistas.
- Terreno sem pistas: não há indicação do rumo para a solução.
- Visão estreita: acreditar resolvê-lo com um pressuposto inquestionável. Inquestionável porque a pessoa tem uma representação limitada do problema ou tem a mente fixada a um padrão habitual de pensamento.
- Busca limitada: a pessoa busca a solução dentro de limites que não a contêm.
- Falsas promessas: andar em círculos experimentando as mesmas ações. Os sinais promissores tornam absurda a ideia de abandoná-las. Os problemas que exigem criatividade tentam a pessoa com respostas que são quase boas, mas não o suficiente. Duro é descartá-las.

Diante desse quadro de dificuldades, Perkins sugere meios de pensar que podem ser úteis a quem deseja escrever criativamente:

- Por analogia: fazer ramificações da intuição básica, ao comparar fenômenos sem relação entre si.
- Conexões lógicas: criar cadeia de relações razoáveis entre fatos.
- Colocar uma pergunta crucial no centro do raciocínio.
- Por busca sistemática: movimentar-se pelos arredores certos.
- Examinar sistematicamente grande número de possibilidades.
- Reobjetivar: usar de outro modo o que foi desenvolvido originalmente para um dado fim.

Um texto, para ser criativo, precisa ser visto como um jogo de xadrez: que movimento devo fazer, qual levaria a que situação e que efeito poderei obter? Que ideia ou imagem torna palpável o que quero dizer?
Ser inventivo é saltar o quadro de referências predominante. É alterar o próprio ponto de vista ou aprofundar o exame de um dado fenômeno; é prestar atenção à informação disponível e fazer um atento exame flexível das implicações dela.

Esforço
Não é tarefa simples. Exige esforço contínuo, mudanças de hábito e a disposição para descobrir, certa avidez por surpresas e peito para fazer. O filósofo Henri Bergson defendia que o ato criador está sempre relacionado a uma tensão e um esforço, não à espontaneidade e à inspiração. Se apenas se deixasse inspirar, a pessoa só reproduziria aquilo que já existe. "O espírito elabora a frio, combinando ideias entre si, há muito vazadas em palavras, que a sociedade lhe entrega em estado sólido", escreveu em As Duas Fontes da Moral e da Religião (Almedina, 2005). Bergson desqualificava toda facilidade no ato de criação. Seria preciso, antes de tudo, superar a resistência da matéria, enfatizar o contato com um obstáculo concreto de escrita, vencer hábitos, as imagens rígidas que estão entre a pessoa e sua imaginação.

"O esforço é penoso, mas é também precioso, mais precioso do que a obra que resulta dele, porque graças a ele tiramos de nós mais do que tínhamos, elevamo-nos acima de nós mesmos", escreveu em A Energia Espiritual (pp 831-2).

Esse esforço só é possível, reitera o filósofo, no contato com a matéria e sua resistência. Ninguém procura o que já sabe - não seria sincero, embora inúmeros textos sejam feitos para confirmar o que seu autor ou leitor já sabia. O escritor criativo é aquele que, mesmo não sabendo o que vai criar, sabe o que procura: o surpreendente, o admirável da ideia que supera um obstáculo, o momento em que as peças de um quebra-cabeça se encaixam.

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